Soberania é ponto-chave no acordo Mercosul-UE

Depois de 20 anos de tratativas, Mercosul e União Europeia concluíram, no dia 28 de junho de 2019, o acordo de livre-comércio entre os dois blocos. As negociações foram iniciadas em 1999, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso; foram interrompidas, em 2004, no início da gestão do presidente Lula; retomadas, em 2010, no governo da presidente Dilma Rousseff, ganharam novo impulso no período do presidente Temer e foram concluídas no início do atual governo.

Diga-se, de passagem, que foi no governo da presidente Dilma Rousseff que foi apresentada a primeira proposta concreta de abertura do Mercosul para a União Europeia, na Cúpula de Madri, em maio de 2010. “Nos anos subsequentes negociadores dos dois lados deram início a conversas para troca de ofertas em bens, serviços e compras públicas, ocorrida apenas em maio de 2016”[i].

Como todo processo de negociação complexo, principalmente entre dois blocos de países com mercados altamente protegidos e interesses conflitantes em setores sensíveis, as tratativas foram difíceis e se arrastaram por anos. O pomo da discórdia sempre foi a questão agrícola, uma vez que os europeus temiam que, confrontados com produtores mais eficientes do Mercosul, seus agricultores perdessem mercados em seus próprios países e em terceiros países para onde exportam.

Embora ainda não se saiba detalhes do acordo – é sempre nos detalhes que o diabo se esconde – o certo é que um e outro lado tiveram que fazer concessões. Sem que esses detalhes sejam totalmente conhecidos, é difícil saber quem cedeu mais para que o acordo fosse concluído e quais os ganhos potenciais para cada lado.

Pelo que foi divulgado, apesar das restrições de acesso dos produtos agrícolas do Mercosul ao mercado europeu, que ainda permanecerão, o ganho potencial para as exportações do Mercosul, sobretudo do agronegócio, podem ser expressivas. O Ministério da Economia fala em um aumento das exportações do Brasil para aquele bloco na ordem de US$ 100 bilhões até 2035[ii]. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estimou que o acordo pode aumentar as exportações do Brasil para a União Europeia em US$ 9,9 bilhões nos próximos dez anos, o que representa um aumento de 23,6%. A Confederação Nacional da Agricultura (CNA) não publicou nenhuma estimativa de ganhos, mas ressaltou que “a União Europeia vai liberalizar 99% das importações agrícolas do Mercosul. Ao todo, 81,7% dos produtos agropecuários terão tarifas de importação reduzidas ou eliminadas”[iii]. Suco de laranja, frutas (melões, melancias, laranjas, limões, entre outras), café solúvel, peixes, crustáceos e óleos vegetais terão as tarifas zeradas. A CNA ressalva, porém, que o acordo não terá efeito imediato porque a União Europeia terá cerca de dez anos para reduzir tarifas.

Com relação à indústria, a julgar pelas manifestações dos principais líderes e associações de classe da indústria, o acordo é visto mais como oportunidade do que como ameaça. Como me disse uma importante liderança da indústria de máquinas de São Paulo: “Tanto a Fiesp, como a Abimaq, estão vendo com bons olhos o acordo Mercosul-União Europeia”. O presidente da CNI afirmou que “o aumento das exportações agrícolas ao bloco europeu trará reflexos positivos para a indústria, já que a cada R$ 1 bilhão exportado pelo agronegócio são consumidos cerca de R$ 300 milhões em bens industrializados no País, em setores como aço, químicos e máquinas e equipamentos”[iv]. Destaca ainda que “o acordo reduz a zero tarifas de importação, que hoje oneram entre 2,5% e 17% os bens industriais que o Brasil exporta para o bloco, que vão de vestuário a produtos químicos e aviões. Vale ressaltar que 56% das vendas para a União Europeia são hoje de bens industriais.”

Há que se considerar, porém, que para o acordo entrar em funcionamento há um longo caminho a ser percorrido. Primeiro porque ainda precisa de um ajuste fino. Há que se aparar inúmeras arestas, que determinarão a necessidade de instituir prazos de desgravação sobre produtos e serviços considerados sensíveis de ambas partes. Uma vez realizados os ajustes, o acordo deverá passar pela ratificação das diversas instâncias da União Europeia e do Mercosul para entrar efetivamente em funcionamento. No caso do Mercosul, aparentemente, esse processo será mais simples, uma vez que há apenas quatro países diretamente envolvidos – Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai – e nada indica que seus respectivos parlamentos criarão alguma dificuldade para aprovação do acordo.

Já o caso da União Europeia é bem mais complicado e pode se arrastar por muitos anos. Depois de aprovado no Parlamento Europeu, o acordo deverá passar pela ratificação dos parlamentos dos 27 países-membros e, em alguns, como a Bélgica, pelos parlamentos regionais das regiões flamenga e francesa.

Como a entrada em funcionamento do acordo depende da aprovação unânime dos envolvidos, a recusa de um único parlamento pode travar o acerto e torná-lo letra morta. Nunca é demais lembrar que, em 1947, na Conferência de Havana, foi aprovada a criação da Organização Internacional de Comércio, que para entrar em funcionamento deveria passar pela ratificação dos parlamentos dos 23 países que haviam proposto sua criação, inclusive o Brasil, o que nunca ocorreu, sobretudo pela resistência do Congresso dos Estados Unidos em submeter sua política agrícola ao escrutínio de uma organização internacional. Somente 47 anos depois essa organização veio à luz tal como a conhecemos hoje: Organização Mundial do Comércio (OMC).

Veja-se que no caso da União Europeia há uma revolta crescente dos eleitores dos países- membros em relação ao que consideram uma ditadura da “burocracia de Bruxelas” (cidade onde fica a sede da União Europeia), que, sem ter a legitimidade do voto, toma decisões que são empurradas goela abaixo dos países-membros. O caso recente do Brexit é, em grande medida, resultado desse mal-estar. A força crescente dos “Verdes” e, sobretudo, da direita nacionalista na Europa, são um desafio concreto para a União Europeia e a aprovação desse acordo de livre-comércio será um teste importante.

Mas o fato é que dentro da União Europeia há forças poderosas que têm grande interesse no pacto comercial.  A rapidez com que Alemanha e França decidiram assinar o acordo, tão logo o Mercosul baixou de forma significativa suas exigências de acesso a seus produtos agrícolas no mercado europeu, demonstra que viram um negócio excelente sobretudo para sua poderosa indústria. Como afirmou, Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, por ocasião do anúncio: “Essa é obviamente uma grande notícia para as empresas, trabalhadores e para a economia dos dois lados do Atlântico, economizando mais de 4 bilhões de euros por ano de impostos. Esse é o maior acordo comercial que a União Europeia já concluiu.”

Mesmo considerando que no fim das contas o dinheiro sempre fala mais alto e o brilho do vil metal os levará a mandar as preocupações de parte do seu eleitorado com o meio ambiente às favas, o fato é que os governos europeus não podem desconsiderar que parcela crescente desse eleitorado é cada vez mais sensível à questão ambiental – hoje os Verdes são uma poderosa força política em toda a Europa. A fala do presidente francês e da chanceler alemã condicionando a efetivação do acordo à manutenção, pelo Brasil, dos compromissos assumidos no Acordo de Paris, faz parte desse jogo, mesmo porque eles sabem que as ameaças do Brasil de deixar essa convenção multilateral sobre meio ambiente são bravatas.

As mesmas preocupações existem em relação aos agricultores europeus. Mesmo que a agricultura na Europa represente uma fração cada vez menor de seu produto interno, a força política desse setor, em geral sustentáculo importante dos partidos mais conservadores, nunca pode ser menosprezada, haja vista seu papel nas eleições recentes, aliás não somente na Europa, mas também nos Estados Unidos e no Brasil.

Ponderados todos esses aspectos, não seria exagero imaginar que a efetiva colocação em prática desse acordo ainda levar ainda uma década. Embora não tenhamos como fazer uma avaliação mais precisa dos ganhos e perdas previsíveis, não só porque não foram divulgados oficialmente os seus detalhes, mas também porque muitos desses detalhes estão ainda sendo discutidos, é possível avaliar o sentido geral desse acordo. Afinal, é bom ou ruim para o Brasil e o Mercosul ampliar seus acordos de livre-comércio?

Copo meio cheio ou um meio vazio?

Os acordos de livre-comércio são assinados ao abrigo do Artigo 24 do Acordo do GATT 1994, também presente no acordo anterior, o GATT 1947. Esse artigo aparentemente conflita com o Artigo 1 do mesmo acordo – que estabelece o conceito de nação mais favorecida, segundo o qual todas as vantagens que um país oferecer a outro país devem ser automaticamente estendidas aos demais países, o que, em tese, inviabilizaria a criação das zonas de livre comércio.

O conflito é apenas aparente. Considerando que do ponto de vista da OMC, o mundo ideal seria aquele onde prevalecesse o livre-comércio entre todos os países, mas que tal situação é quase utópica, os acordos de livre-comércio são encarados como passos graduais em direção a essa situação ideal, mesmo que nunca seja alcançada. No caso em pauta, seria quase impossível estabelecer uma área de livre-comércio entre os 27 países da União Europeia e os 4 do Mercosul se as negociações tivessem que ser feitas bilateralmente. Seria necessário assinar 465 acordos. Já um único entre os dois blocos que estabeleceram previamente áreas de livre-comércio é algo bem mais factível.

A questão é: seria o livre-comércio a situação ideal para que todos os países pudessem potencializar seu desenvolvimento? Para a teoria das vantagens comparativas de David Ricardo, aceita como se fosse um dogma pelos economistas liberais, a resposta é sim. De acordo com Ricardo, se cada país se especializar na produção do que faz melhor ou no que é menos ruim, a produção global de mercadorias aumenta, o que, em tese, seria bom para todos.

Mas se a coisa é tão simples, por que, então, todos os países adotam, em menor ou maior grau, medidas protecionistas? A resposta é: porque dependendo do tipo de mercadoria em que um país se especialize, ou seja, dependendo do lugar que ele ocupe na divisão internacional do trabalho, seu potencial de crescimento, de criação de empregos e renda será diferente. Ou alguém tem dúvida de que um país que se especialize na produção de bens de alta tecnologia estará em situação melhor do que outro que se limite a exportar matérias-primas? Gerará empregos melhores, pagará salários mais elevados, desfrutará de ganhos de monopólio associados às inovações tecnológicas e daí por diante.

Voltemos à questão do acordo de livre-comércio entre o Mercosul e a União Europeia. Quais são as vantagens comparativas de cada bloco? Seriam as mesmas? Certamente não; enquanto o Mercosul tem evidentes vantagens na agricultura e portanto na exportação de produtos agrícolas in natura ou processados, a União Europeia tem vantagens comparativas na produção de bens manufaturados de média e alta tecnologia. Qual seria então a tendência da divisão de trabalho dentro dessa grande área que soma um PIB de US$ 19 trilhões e um mercado de 750 milhões de pessoas? Que cada bloco se especialize na produção do que faz melhor. Ou seja, fosse realmente implantada uma grande área de livre-comércio sem nenhum tipo de barreira, a tendência seria de que o Mercosul se especializasse na produção agrícola e agroindustrial e a União Europeia na produção de bens manufaturados. Exportaríamos mais carne para os europeus e importaríamos mais automóveis e máquinas.

Mas a verdade é que nem interessa à União Europeia entregar seu mercado de produtos agrícolas para os agricultores do Mercosul, como também não interessa aos países do Mercosul entregar seu mercado de bens industriais manufaturados às empresas europeias. Por isso os detalhes do acordo são importantes. Qual será o nível de proteção que a União Europeia vai querer estabelecer para seus agricultores? Qual será o nível de proteção que o Mercosul vai querer estabelecer para sua indústria manufatureira? Dependendo desse balanço, o acordo poderá ser interessante para apenas um dos lados, para os dois lados de forma equitativa, ou para os dois lados, mas de forma desigual. Ou seja, os ganhos da especialização poderão ir para apenas um lado, para os dois lados de forma igual ou para os dois lados de forma desbalanceada.

Não é possível, portanto, cravar uma posição definitiva sobre o assunto sem que se saiba como cada bloco vai proteger seus setores mais sensíveis. Aparentemente, no afã de fechar rapidamente um acordo, e movidos por visões ultraliberais da economia, os negociadores do Mercosul fizeram grandes concessões. A rapidez com que a União Europeia fechou o acordo, depois de fazer jogo duro durante anos, nos leva a suspeitar que seus negociadores anteviram grandes ganhos. Mas também não é possível dizer que isso significa ganho nulo ou mesmo perdas para o Mercosul.

Em tese, em um mundo cada vez mais globalizado, no qual a produção é cada vez mais dominada por grandes empresas multinacionais que organizam sua produção ao longo de cadeias produtivas e de geração de valor que se espalham pelo mundo, visando reduzir custos de produção, garantir acesso a mercados e fontes de matérias-primas, não parece ser bom negócio isolar-se atrás de barreiras tarifárias e não-tarifarias que afastem investimentos externos. As cadeias globais de valor tendem a se instalar em áreas de livre-comércio, onde o fluxo de produtos finais e componentes é mais rápido e mais barato.

Segundo dados da OMC, existiam, em 2018, 467 acordos de livre-comércio ativos no mundo. Desse total o Mercosul participa somente de 9, sendo apenas 3 com países fora da América Latina e todos  de pouca relevância econômica: Egito, Palestina e Israel. Há, ainda, o agravante de estar fisicamente distante dos principais mercados consumidores localizados no hemisfério norte, o que encarece os custos de produção para empresas que queiram nele localizar parte de suas atividades produtivas globais.

Ampliar o leque de acordos de livre-comércio dos quais o Mercosul participe parece ser, portanto, uma necessidade para a região aumentar sua cooperação interindustrial com outros países. O caso da China mostra que a abertura ao comércio internacional pode ser uma alavanca importante para o desenvolvimento, desde que exista um projeto de desenvolvimento e uma estratégia clara para realizá-lo. Infelizmente, não parece ser o caso do Brasil, onde prevalece atualmente uma visão ultraliberal que vê qualquer intervenção do Estado no domínio econômico como necessariamente geradora de ineficiências, afora a ausência de uma liderança política capaz de unir o país em torno de um projeto nacional de desenvolvimento.


[i] CNI. Negociações entre o Mercosul e a União Europeia. Documento de posição da indústria. Brasília: 2017

[ii] Valor Econômico. Acordo UE-Mercosul pode elevar exportações em US$ 100 bi, diz governo. 28/06/2019

[iii] Agência Brasil. Indústria e agronegócio elogiam acordo Mercosul –União Europeia. 28/6/2019

[iv] Andrade, R. Análise: Indústria ganha com acordo comercial entre Mercosul e UE. O Estado de S. Paulo, 29/06/2019.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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