Movimentos negros repetem lógica do racismo científico

Antonio Risério

O mulato Abdias do Nascimento — que caminhou do fascismo integralista para o racialismo “made in USA” — era um homem preconceituoso. Basta ver a estranha seletividade com que, apesar de sua filiação à mestiçagem triste tropical brasileira, ele usa a própria palavra “mulato”.

Quando quer fazer o elogio de algum mestiço de branco e preto, Abdias chama-o “negro”. Mas, quando quer execrar o sujeito, trata-o como “mulato” (muito embora, em seu discurso geral, faça de conta que o mulato não existe).

Assim, nos seus textos e palestras, o mulato Luiz Gama, filho de branco baiano de origem portuguesa e da preta Luiza Mahin, era “negro”. Já o mulato capitão-do-mato ou feitor, não: era “mulato” mesmo.

Pois bem. Descende diretamente do velho guru Abdias do Nascimento (1914-2011) o slogan racialista exibido em manifestação na avenida Paulista, no dia 20 de novembro, pelos ativistas dos movimentos negros: “Miscigenação também é genocídio” — pregação explícita em favor da implantação de um apartheid amoroso-sexual no país.

Diante da afirmação slogamática, aliás, ficam menores outros debates, como os estéticos, quando, depois que conseguimos atirar fora a praga do “realismo socialista”, querem nos aprisionar no cárcere do “realismo racialista”. E um filme como “Vazante” (Daniela Thomas) acabou pagando o pato recentemente, nesse “revival” rácico-stalinista.

Agora, com o combate à miscigenação à frente, o lance é mais grave: passa-se do “lugar de fala” ao “lugar de cama”.

Mas vamos puxar o fio da meada. Em “O Genocídio do Negro Brasileiro” (1978), bíblia do nosso racialismo essencialmente colonizado, um Abdias confuso e sectário monta duas sequências. Numa, encadeia mestiçagem, branqueamento e alienação da identidade negra. Noutra, amarra miscigenação, branqueamento e aniquilação da raça negra.

Neste segundo caso, Abdias vê a mestiçagem/miscigenação como estratégia de extermínio da população negra: “(…) o mulato prestou serviços importantes à classe dominante; durante a escravidão ele foi capitão-do-mato, feitor (…). Nele se concentraram as esperanças de conjurar a ‘ameaça racial’ representada pelos africanos. E estabelecendo o tipo mulato como o primeiro degrau na escada da branquificação sistemática do povo brasileiro, ele é o marco que assinala o início da liquidação da raça negra no Brasil”.

E ainda, como se nunca tivesse se olhado no espelho: “O processo de miscigenação, fundamentado na exploração sexual da negra, foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio. (…) Com o crescimento da população mulata, a raça negra iria desaparecendo sob a coação do progressivo clareamento da população do país”.

Anacronismo

Como argumentei em “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros” (2007), é uma visão unilateral e anacrônica, para dizer o mínimo. Tanto do ponto de vista histórico, quanto do genético. Por várias razões. Afinal, quem quer que conheça a história de nosso passado escravista sabe que mulatos não foram somente capitães-do-mato ou feitores.

Muito pelo contrário: participaram de rebeliões contra a elite senhorial branca, criaram (e viveram em) quilombos e, entre outras coisas, formaram a liderança da Revolução dos Alfaiates (1798), centrada na luta contra a escravidão e o colonialismo —liderança que foi presa e enforcada em praça pública.

Além disso, não só a miscigenação não é —nem pode ser— um processo unilateralmente embranquecedor, como tal projeto de branquear a população foi coisa datada e exclusiva da classe dirigente —e nossa vida social e cultural aconteceu, em sua maior medida, à revelia do Estado e dessa classe.

Por fim, é mais do que anacrônica a suposição de Abdias que sustenta o feminismo negro. A mestiçagem, hoje em dia, não pode mais ser vista como violência contra a mulher negra.

Primeiro, porque temos uniões de homens pretos com mulheres brancas. Segundo, porque a união ou o casamento de um homem branco com uma mulher preta não se dá mais sem seu assentimento, cumplicidade ou mesmo iniciativa. Melhor não falsear a realidade com discursos “historicistas”.

Mas é impressionante, paradoxal mesmo, ver como a atual ideologia racialista, que se alastrou pelo país a partir principalmente do ambiente acadêmico, repete ao pé da letra a velha miragem do “racismo científico” do século 19, que acreditava na fantasia de uma desigualdade essencial e insuperável entre as raças.

Naquela época, os teóricos do “racismo científico” defenderam a tese totalmente sem pé nem cabeça (que agora vemos retomada) de que era possível branquear a população brasileira através da imigração e da miscigenação, já que neste processo prevaleceriam sempre os genes da “raça superior” —a branca, naturalmente.

Em “Sur les Métis au Brésil” (sobre os mestiços do Brasil), texto apresentado em 1911 no primeiro Congresso Internacional das Raças, realizado em Londres, o antropólogo Batista de Lacerda, do Museu Nacional, chegou até a fazer suas contas na ponta do lápis. Segundo ele, o branqueamento do povo brasileiro estaria concluído na segunda década do século 21.

E sempre que recordo isso, lembro também uma deliciosa boutade do mestiço brasileiro Chico Buarque de Hollanda, falando da obrigação em que estávamos de promover o casamento do goleiro Taffarel e da apresentadora Xuxa, a fim de tentar evitar a extinção da raça branca no Brasil.

Ataques

Agora, como disse, os racialistas repetem o dogma que se revelou um fracasso histórico espetacular. E adiantam outros passos esdrúxulos, desde que a paranoia político-social tem seus próprios desenhos e suas próprias regras.

Com medo de um branqueamento final e total do povo brasileiro, essa turma parte para o ataque pesado. Dispara chumbo grosso contra relações amorosas e sexuais que envolvam pretos e brancos. E não é de hoje. Já na década de 1970 esse discurso tinha aflorado com nitidez.

O próprio Abdias do Nascimento, que nunca olhava para si mesmo nem discutia seu próprio cotidiano, era discreta mas severamente criticado por diversos ativistas político-acadêmicos do movimento negro, em consequência do seu casamento com uma branca americana, Elisa Larkin, autora do livro (bem ruinzinho, por sinal) “Pan-Africanismo na América do Sul: Emergência de uma Rebelião Negra” (1981).

E Abdias, embora defendesse a tese estapafúrdia de que miscigenação era genocídio, nunca se deu ao trabalho de analisar o seu caso pessoal. Sempre fez de conta que não ostentava uma ancestralidade mista —birracial, no mínimo— e que não vivia com a mulher que vivia. Mas vamos deixá-lo de parte por ora.

O que quero salientar é o ponto a que chegaram nossos atuais “neonegros” (vale dizer, mulatos que sempre foram mulatos e hoje se apresentam como pretos retintos). Já faz tempo que, em seu afã de combater a mescla interracial, vêm falando de um tal de “amor afrocentrado”, rótulo ideológico que mais não é do que um eufemismo para a segregação erótica.

Tem mais. Uma coisa é o fenômeno objetivo da mistura genética, outra coisa são as ideologias da mestiçagem.

No passado, a mestiçagem brasileira ganhou leituras mistificadoras, senhoriais. Para se contrapor a isso, muitos cometeram um equívoco primário: em vez de rediscutir em profundidade a questão, resolveram eliminá-la, como um sujeito que, ao fechar a janela, acredita que a rua deixou de existir.

Mas continuamos mestiços. E a mestiçagem não é indestacável da fantasia da democracia racial. Recusar-se a usar a noção é como se recusar a falar de raça por causa do uso que os nazistas fizeram do conceito, combatendo ferozmente, aliás, a mestiçagem. Se não entendermos nossas misturas, nunca entenderemos a nós mesmos.

E é bom sublinhar que mestiçagem não é sinônimo de harmonia. Não exclui o conflito, nem a discriminação. A melhor prova disso é o Brasil. Aqui, uma coisa é certa. Não pode existir delírio ideológico maior, entre nós, do que fantasiar a inexistência de mestiços. Mestiços nascem diariamente de uma ponta a outra do país.

Mas vamos finalizar. Se a mestiçagem diminui a população negra, também diminui a população branca. É curioso que “racistas científicos” e racialistas atuais acreditem no contrário, que a miscigenação branqueia, mas não escurece. A verdade é que o processo biológico não é (nem poderia ser) de mão única, privilegiando magicamente os brancos.

Um estudioso negroafricano menos delirante, Kabengele Munanga, em “Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil” (1999), vai ao ponto: “(…) a realidade empírica, crua, observada por todos, é a de que o Brasil constitui o país mais colorido do mundo racialmente (…). Fica insustentável a crença no aniquilamento do contingente negro, por um lado, e no branqueamento completo de toda a população brasileira, por outro (…). O colorido da população desmente as previsões do modelo”.

Claro. A verdade é que, se um dia não houver nenhum negro no Brasil, também não haverá nenhum branco. E assim me vejo na obrigação de repetir aqui uma observação (óbvia) que já fiz inúmeras vezes: se for pelo caminho da miscigenação, o genocídio do negro será inseparável do suicídio do branco.

FONTEFolha de S. Paulo, 17-12-2017
Antonio Risério, antropólogo, poeta e ensaísta, é autor de “A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros” e “Mulher, Casa e Cidade”.

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