“Machista” e “heteropatriarcal”, a língua portuguesa?

Como ler “Car@s Alun@s”? A propósito de gênero gramatical e regras de concordância, o linguista e professor universitário português João Veloso analisa o alegado machismo de certas fórmulas linguísticas.

Minha pátria é a lingua portuguesa

Exm.º Sr. Dr., Senhora Presidenta, Car@s Amig@s e o Sexo dos Anjos

Envolvi-me recentemente na discussão acerca de quão “machista” e “heteropatriarcal” pode ser uma língua como o português – mais concretamente, a sua gramática, ou seja, o sistema computacional altamente independente da convenção humana e responsável mais ou menos mecânico pela formação das palavras e das frases, para abreviar – por causa de um recurso gramatical universal como a concordância e do uso do chamado “falso neutro” em formulações do tipo “Caros Amigos” para se incluir amigos e amigas num vocativo comum. Pretendendo-se abrangentes, estas formulações tradicionalmente descritas como estando “no masculino” são por vezes recebidas como excludentes por destinatárias do sexo feminino. O meu último ato acadêmico como presidente da Associação Portuguesa de Linguística, imediatamente antes da Assembleia Geral em que foi eleita a minha substituta, em outubro passado na Universidade de Aveiro, consistiu precisamente na (i)moderação de um debate sobre este tema. A ideia de o trazer a um encontro de linguistas nasceu de conversas particulares com amigas que, por razões diversas, tinham estado ligadas à iniciativa cidadã de se alterar oficialmente o nome do Cartão de Cidadão para Cartão de Cidadania, por se considerar a primeira designação como machista – projeto a que eu, enquanto linguista e cidadão alérgico a todas as formas de discriminação, me tinha oposto. Achámos então que a discussão poderia ser trazida para o contexto de um encontro mais “profissional” como o congresso anual dos linguistas portugueses.

Estas notas reúnem alguns dos tópicos com que nessa e noutras ocasiões tenho tentado defender um ponto de vista que não é só meu e que constitui, para mim e para muitos colegas linguistas, uma questão essencialmente técnica e gramatical, desprovida da carga filosófica e ideológica com que é tratada de forma mais militante por outras pessoas, entre as quais encontro também, devo reconhecê-lo, alguns colegas de ofício.

O meu ponto de vista acerca desta questão, separando-me da visão de outras pessoas com cujas lutas alinhei noutras ocasiões, é, em resumo, o seguinte: a gramática do português é a gramática do português, não tem sexo, não é discriminatória e o combate ao machismo, altamente louvável e urgente, deve ser travado noutras frentes. O chamado “género gramatical”, confundido simplistamente com o sexo biológico ou os papéis sexuais socialmente assumidos, não passa de uma propriedade formal da gramática do português (e de outras línguas parecidas com ele). Corresponde, nessas gramáticas, à atualização de uma propriedade universal de todas as línguas humanas, a concordância. O alastramento de uma propriedade formal das línguas a interpretações sociais, a meu ver sem grande fundamento técnico ou objetivo, constitui, também a meu ver, uma distorção e uma diversão dos factos.

É este conjunto de posições de partida que vou discutir no texto, à luz – inevitavelmente – da minha condição de linguista formal do português.

Vamos então por partes.

1. A concordância (“agreement”) é uma propriedade formal das línguas

Todas as línguas dispõem de um mecanismo básico que faz com que, dentro de um constituinte maior (um sintagma, uma frase), uma determinada propriedade formal associada a uma palavra-núcleo seja obrigatoriamente “absorvida” por outras palavras, em geral próximas entre si no alinhamento sintagmático.

As línguas, na sua esperteza magistral, têm destas coisas: criam dentro delas próprias umas marcas formais que não têm qualquer utilidade fora dos sistemas linguísticos. O exemplo acabado deste tipo de marcas, como costumo dizer aos meus alunos de linguística, é aquilo que tradicionalmente designamos, em línguas como o português, por “vogal temática”. Sob muitos pontos de vista, a vogal temática é aparentemente o morfema mais “inútil” de todos, embora, quando analisamos o seu funcionamento numa grande variedade de línguas, não cessemos de nos maravilhar com o seu poder extraordinário: é uma espécie de marca de água que nomes e verbos da língua carregam fatalmente consigo para serem automaticamente identificados como membros de uma família maior a que se aplicam processos gramaticais regulares. Compara-se, como gosto de dizer aos meus alunos, àqueles códigos de cores que em alguns supermercados avisam os consumidores do tipo de alimentos que estão a ser vendidos: este é dietético, este é bom para diabéticos, este é rico em fibras, este é aconselhado para alérgicos ao glúten, este é feito com derivados do leite… O “A” que se encontra perto do final do infinitivo “AMAR”, ao contrário do “I” perto da terminação de “DORMIR”, só serve para dar duas instruções muito básicas aos falantes do português:

– se quiseres construir o imperfeito do indicativo de “AMAR” (e de todos os verbos com aquele “A(R)” no final), constrói-o com “-va” (amava, compravas, levávamos, acabavam); se quiseres construir o mesmo tempo verbal de um verbo com uma terminação diferente de “A(R)”, usa “-ia” (dormia, seguias, comíamos, lia, vendiam);

– se quiseres construir o presente do conjuntivo de “AMAR” e todos os seus primos terminados em “A(R)”, marca-o com um /E/: ame, compres, levemos, acabem; para os verbos que não sejam carimbados com este /A/, usa justamente um /A/ para esse tempo verbal: durma, sigas, comamos, leia, vendam.

A concordância – a tal propriedade universal que obriga várias palavras de um grupo de palavras, em geral muito próximas na ordem sintática da frase e pertencentes a uma mesma estrutura hierarquicamente superior, a partilharem uma dada marca formal comum (uma vogal, um morfema, uma desinência, um tom…) – assenta precisamente em fenómenos como o que acabo de exemplificar.

Em português – pelo menos na norma padrão do português europeu –, p. ex., todos os artigos, determinantes, quantificadores, nomes e adjetivos pertencentes ao mesmo “sintagma nominal” (e que, simplificadamente, partilham solidariamente uma mesma função sintática dentro da frase: formam, p. ex., o sujeito (complexo) ou o complemento direto da frase) concordam com a palavra-núcleo (normalmente, o nome) desse grupo maior em duas propriedades principais, tradicionalmente designadas por género e número.

Numa frase como

O novo professor inglês de Matemática chegou ontem

o “gênero” e o “número” de professor têm de ser o mesmo do artigo (“o”) e dos adjetivos (“novo”, “inglês”) que repartem com esse nome a função de sujeito da frase. Têm todas de ter, obrigatoriamente, o mesmo “carimbo”, tal como, num supermercado, todos os produtos dietéticos têm um selo verde a englobá-los numa mesma categoria de produtos à venda.

Se isso não acontecer, a frase torna-se agramatical, ou seja, inaceitável à luz da gramática da língua e, por isso, intuitivamente rejeitada pelos seus falantes nativos (os exemplos de construções agramaticais, por convenção, costumam ser antecedidos por um asterisco, procedimento que adotarei ao longo de todo o texto):

*A novas professor inglesa de Matemática chegou ontem

Substituindo-se “professor” por outro nome, com um “género” e um “número” diferentes, as restantes palavras do grupo nominal são obrigatoriamente alteradas também:

A nova professora inglesa de Matemática chegou ontem.
Os novos professores ingleses de Matemática chegaram ontem.
As novas professoras inglesas de Matemática chegaram ontem.
As famosas sumidades birmanesas de Matemática chegaram ontem.
O simpático especialista irlandês de Matemática chegou ontem.
A brilhantíssima especialista tailandesa de Matemática chegou ontem.

Noutras línguas, como o latim, além do “gênero” e do “número”, as palavras “dominadas” pelo nome absorvem dele outras propriedades formais: diz-se, p. ex., que concordam “em caso”, absorvendo as mesmas terminações do nome associadas à função sintática que desempenham em conjunto

Os exemplos seguintes, retirados precisamente do latim, ilustram esse tipo específico de concordância.

Discipulus novus legit librum magnum.

Aluno-SUJ         novo-SUJ  lê         livro-CD   grande-CD
O aluno novo lê o livro grande.
Discipula nova legit librum magnum.

Aluna-SUJ      nova-SUJ   lê         livro-CD   grande-CD
A aluna nova lê o livro grande.
Vidi discipulum novum 

Vi          aluno-CD            novo-CD
Vi o aluno novo.
Vidi discipulam novam.

Vi          aluna-CD            nova-CD
Vi a aluna nova.

Em latim, como se vê pelos exemplos, a terminação dos nomes não dá somente indicações relativas ao “género” e ao “número”: ela indica também a função sintática desempenhada pelo nome. Consoante as classes por que se dividem os nomes, se estes forem o sujeito da frase apresentarão terminações como ­“-us” ou “-a” (como sucede com “discipulus” e “discipula”, nas duas primeiras frases). Se corresponderem ao complemento direto, terminam geralmente em “-m”, tal como evidenciado por “librum” (frases 1 e 2), “discipulum” (frase 3) e “discipulam” (frase 4). O mais importante neste momento – em que o que nos interessa é pôr em destaque os mecanismos de concordância patentes em diversas línguas do mundo – é que a terminação do nome é absorvida e reiterada, fruto dessa mesma concordância, pelo adjetivo que partilha com o nome a mesma função sintática dentro da frase. É por esta razão – exclusivamente gramatical – que encontramos a replicação da terminação do nome no adjetivo que com ele concorda: “discipulus novus”, “librum magnum”, “discipulam novam”1.

É então a esta propriedade que chamamos concordância. Trata-se um procedimento meramente formal, automático, gramatical. Os linguistas consideram-no universal, porque presente em todas as línguas do mundo, e creem que ele surgiu nas línguas para facilitar o processamento de cadeias longas: seria um recurso mais ou menos mnemónico para, ao processarmos uma frase, “agruparmos” em grandes blocos conjuntos mais ou menos extensos de palavras com a mesma função dentro da frase, poupando-nos ao esforço cognitivo de atribuir função e propriedades gramaticais às diversas palavras da frase uma a uma, de forma repetida e redundante.

Em línguas que a nós, falantes do português, parecem muito exóticas, a concordância recorre a propriedades como a dimensão dos objetos, a distância destes em relação ao locutor, o carácter animado/inanimado dos seres designados, etc., não se fazendo caso nenhum, em tais línguas, daquilo a que estamos habituados a chamar “género” nas línguas faladas na Europa. Exemplos muito ricos e muito ilustrativos desta variedade de propriedades ontológicas transpostas para a marcação gramatical são encontrados nas línguas das famílias níger-congolesa e níger-cordofaniana, faladas em África, em que os nomes recebem marcas formais (semelhantes às “terminações” das línguas indo-europeias) que traduzem linguisticamente propriedades como “ser contável”, “ser repetível”, “ser sólido”, “ser líquido”, “ser redondo”, “ser concreto”, “ser abstrato”, “ser humano”, etc. Esses afixos estendem-por concordância às palavras que concordam com tais nomes2.

Ponto número um, portanto: a concordância é uma particularidade formal que se estabelece entre palavras de um mesmo constituinte frásico, eventualmente para facilitar o seu processamento; é uma característica eminentemente gramatical que pode ter alguma motivação extralinguística em propriedades não gramaticais das entidades nomeadas pelas palavras em causa, não se restringido tais propriedades ao sexo biológico (ou cultural) nem à quantidade dos objetos nomeados3.

Portanto, quando, numa frase do português, alguém diz

A polícia pediu aos vizinhos que se afastassem

“aos” está em vez de “à” ou de “às”, antes de mais nada, para concordar com “vizinhos” (e independentemente, para já, de “vizinhos” incluir aqui seres do sexo masculino e/ou feminino – já lá vamos…). “Frases” como

*A polícia pediu às vizinhos que se afastassem
*A polícia pediu ao vizinhos que se afastassem
*A polícia pediu à vizinhos que se afastassem

não seriam sequer frases admissíveis em português – por não observarem o princípio da concordância – e este é um facto muito básico do qual devemos partir obrigatoriamente para a discussão do problema.

2. Aquilo a que chamamos “gênero” é uma infelicidade terminológica

A nossa tradição gramatical teima em chamar gênero a um dos muitos mecanismos de que as línguas do mundo se socorrem para realizarem o efeito de concordância de que falei no ponto anterior.

Relativamente à maior parte das línguas faladas da Europa, uma tradição terminológica milenar costuma dividir os gêneros gramaticais em duas ou três categorias principais, designando-as a partir da nomenclatura biológica e cultural que remete para o sexo biológico e para a identidade sexual dos seres animados. Parece ser essa a motivação primordial e principal de etiquetas lexicais como masculino, feminino ou neutro.

Neste ponto, vou tentar mostrar como a designação “gênero” é infeliz e desadequada, pela confusão que pode fazer passar entre o plano gramatical e o plano biológico e cultural, e vou tentar defender a ideia de que ela é facilmente substituível, nas descrições gramaticais de línguas como a nossa, por outras bastante menos equívocas.

No proto-indo-europeu – uma língua falada há  alguns  milhares de anos em lugares acerca dos quais linguistas e arqueólogos divergem mas de que descendem quase todas as línguas hoje faladas na Europa e na parte da Ásia compreendida entre o Cáucaso e o Norte da Índia –, a concordância nominal procurava espelhar, em primeiro lugar, uma distinção ontológica entre seres animados e seres inanimados. Relativamente aos primeiros, dotados de sexo biológico, procurava-se manter linguisticamente a distinção entre seres masculinos e femininos, pensando os linguistas que essa distinção é relativamente tardia na própria história do indo-europeu4. Tal como hoje fazem as línguas africanas acima citadas para registar, na estrutura interna dos nomes, indicação relativa à forma, ao estado e à aparência dos seres e objetos designados por esses nomes, o proto-indo-europeu teria criado um sistema relativamente complexo de marcar gramaticalmente a animacidade/inanimacidade dos seres e objetos nomeados e para, dentro dos animados, mais tarde, distinguir entre o género dos machos e o género das fêmeas. Essa marcação far-se-ia pela terminação dos nomes e das palavras que concordavam com eles dentro da frase.

É desta remota noite dos tempos linguísticos – estamos a falar da gramática de uma língua perdida, falada há cerca de 6.000 anos, aproximadamente – que nasce a tripartição, conservada terminologicamente ainda hoje pela tradição gramaticográfica ocidental, entre nomes ditos masculinos, femininos e neutros.

Os linguistas creem que a regularidade da correspondência perfeita entre sexo biológico (ou ausência de sexo biológico) e género gramatical se perdeu muito cedo, porventura ainda dentro do próprio indo-europeu. A perda desta regularidade absoluta pode dever-se a razões de ordem puramente gramatical, relacionadas com a reorganização dos sistemas sufixais da língua, como defendido, entre outros, por Silvia Luraghi5, mas pode ser explicável também pela atribuição zoomórfica e antropomórfica de marcas animadas e humanas a seres originalmente inanimados ou não humanos. A criação das divindades, umas femininas e outras masculinas, é um reflexo antropológico dessa mudança de visão do mundo: e tenhamos presente aqui a tese da “arqueologia feminista” defendida por Marija Gimbutas, uma das maiores especialistas de sempre em cultura indo-europeia que vê na civilização dos indo-europeus o momento em que ancestrais culturas matriarcais foram substituídas por um sistema de organização social patrilinear e dominado pelos homens6.

Bastaria uma observação relativamente simples de dados do português para concluirmos que a ligação entre género gramatical e sexo biológico (ou identitário)7, por muito regular e sistemática que tenha sido em proto-indo-europeu, já não faz sentido nenhum nas línguas a que essa protolíngua deu origem:

– palavras como testemunha, vítima, criança, pessoa são gramaticalmente “femininas” – concordam com o artigo “a”, impedindo construções como “*o testemunha”, “*o vítima”, “*o criança” –, podendo designar seres ora do sexo masculino, ora do sexo feminino:

 O João [masculino] é uma vítima [feminino] dos tempos que correm

                        A Maria [feminino] é uma vítima [feminino] da situação em que se meteu

                        A testemunha abonatória [feminino] deste julgamento foi o Vítor [masculino]

                        O Joel [masculino] é uma criança muito simpática [feminino]

 – por outro lado, todas as palavras do português têm um dos dois géneros que a gramática da língua diz que existem – masculino OU feminino –, mesmo que designem objetos inanimados, desprovidos de sexo biológico. Vejamos os seguintes exemplos:

              Eu sempre gostei daquela parede branca

             O automóvel novo da minha mãe é vermelho

             As portas escancaradas da casa amarela anunciavam uma boa notícia

Palavras como “parede”, “automóvel”, “porta”, “casa” e “notícia”, não designando machos nem fêmeas, têm um “género gramatical” intrínseco que faz com que as palavras que delas dependem na frase apresentem certas marcas formais, por efeito, única e exclusivamente, da concordância gramatical com que iniciei estas notas.

Estes exemplos bastariam, em meu entender, para desfazer a ideia pouco questionada de que, no português, o género ainda tem alguma relação com o sexo biológico ou cultural/identitário.

A observação de outras línguas pode ajudar-nos a compreender melhor esta relação perdida.

Muitas línguas não indo-europeias – como, de entre as faladas hoje, muitas línguas asiáticas como o chinês, o japonês ou o vietnamita – ignoram completamente essa “contaminação” imemorial da biologia e da antropologia sobre os sistemas gramaticais. Nunca tendo registado formalmente (tanto quanto se sabe) qualquer tipo de relação comparável a essa, nem sequer em estádios muito remotos da sua evolução histórica, as gramáticas escritas dessas línguas nem sequer contemplam esta questão, sendo estas línguas frequentemente apresentadas como “línguas sem género” (mas não sem concordância, que se expressa a nível de outras propriedades gramaticais).

Em conclusão a este ponto, poderia então afirmar que designações como “masculino”, “feminino” (e, eventualmente, “neutro”) são hoje completamente imotivadas em línguas como o português e não correspondem a nenhuma “necessidade intrínseca” e universal das gramáticas das línguas do mundo. Dado que podem prestar-se a interpretações ideológicas como a que motiva a atual discussão (completamente estéril, do meu ponto de vista) em torno de um “masculino heteropatriarcal” da gramática, tais designações poderiam mesmo ser substituídas por designações menos comprometidas com a ancestral correspondência género gramatical/sexo biológico.

Pela mesma razão, e dada a expansão do termo “género” para se designar a identidade sexual assumida ou construída pelos sujeitos independentemente do seu sexo genético e biológico8, a própria designação de género como categoria gramatical poderia ser substituída por uma etiqueta mais formal e “gramatical”. “Concordância de classe”, p. ex., poderia passar a integrar a terminologia gramatical e linguística, em vez de “género”. E concomitantemente, em vez de “género masculino” e “género feminino” poder-se-ia optar por designações menos comprometidas com a ligação perdida há vários milénios entre marcação sexual e marcação concordancial. Designações como “Classe A”/ “Classe B”, “Classe A”/ “Classe O”, “Classe 1”/“Classe 2”, “Classe Alfa”/ “Classe Beta”, entre uma miríade de outras, seriam tão ou mais apropriadas como “género masculino” e “género feminino” e atalhariam desde logo uma discussão pouco fundamentada que nos tem decerto desviado de questões bastante mais importantes e essenciais.

3. “Género” e terminação

Outra ideia feita de grande circulação que inquina parte da discussão acerca desta questão é a de que o “género” (vou continuar a manter, um pouco a contragosto, a designação cujo abandono propus no ponto anterior) tem um outro paralelo: como se não bastasse querer ver o género masculino e feminino como uma duplicação, pela gramática, de uma categorização estritamente binária entre seres machos e seres fêmeas, insiste-se muito, em diversos níveis de discussão e contra muitas evidências, em que o género “está” na terminação dos nomes. Em nome desta confusão adicional, sustenta-se a crença de que, no português, nomes terminados em –o pertenceriam ao género masculino, ao passo que nomes terminados em –a pertenceriam ao género feminino…

Uma vez mais, um pouco de cuidado na observação dos dados desta língua (como, porventura, de muitas outras línguas) mostrar-nos-ia que essa generalização é abusiva e inexata, não se aplicando a um número significativo de nomes.

Atentemos em exemplos como os que dou de seguida:

– muitos nomes terminados em –a são do “género masculino”: o planeta, o problema, o fonema, o perneta, o forreta, o esperma, o genoma;

– muitas formas “masculinas” de muitos nomes e adjetivos que admitem os dois géneros mantêm um ­–a como terminação do masculino: o atleta, o especialista, o obstetra, o camarada, o democrata, o catita, o janota;

– há nomes “do género feminino” que terminam em “-o”: a tribo, a libido. Exemplos muito numerosos desta condição são-nos fornecidos pelas formas com singular terminado em “-ão”: a comunicação, a complicação, a reunião, …;

– muitos nomes (e adjetivos) apresentam outras terminações, a partir das quais não seria possível detetar o género das palavras, dado até que a mesma terminação pode ocorrer com formas masculinas ou femininas: o anel; o nariz, a raiz; o açúcar; o/a mártir, o/a terrível; …

Em português, os casos referidos nos parágrafos anteriores encontram uma especificidade importante no subconjunto dos nomes e adjetivos que o linguista brasileiro Joaquim Mattoso Camara Jr. agrupa numa classe particular: os “nomes de tema em /E/”. Falo dos nomes e adjetivos que, no masculino plural – ou, na falta desta forma, no feminino plural –, apresentam uma vogal /E/9 antes da terminação /S/ do plural10:

professor, professora, professores, professoras: masculino plural = professores

contente, contente, contentes, contentes: masculino plural = contentes

juiz, juíza, juízes, juízas: masculino plural = juízes

felicidade, felicidades: feminino plural = felicidades

 Os nomes desta classe apresentam algumas particularidades ao nível do seu comportamento gramatical. Enumero de seguida algumas delas:

  • Nas formas do masculino singular dos nomes, a vogal temática /E/ nem sempre é mantida na forma fonética (pelo menos por todos os falantes) nem na forma ortográfica convencionada: o professor; o cônsul; o juiz. Algumas palavras, porém, mantêm-na na forma “masculina”: o ápice; o óbice; o vértice; o dente; o lente; o príncipe; o visconde.
  • Nas formas do feminino singular dos nomes, a vogal temática /E/ subsiste em muitos casos: a base; a crise; a crase; a nave; a gente; a lápide; a lente; a peste; a pirâmide.
  • Nos nomes, a marcação do feminino por –a (que é relativamente regular nos nomes e adjetivos de “tema em /O/” – vd. o menino/a menina; o aluno/a aluna; o jeitoso/a jeitosa) é relativamente excecional e está circunscrita a formas mais antigas ou tidas como populares: o infante/a infanta; o monge/a monja; o aprendiz/a aprendiza; o mestre/a mestra. Formas recentes como juíza ou embaixadora mostram, no entanto, que o processo se encontra ainda disponível no português contemporâneo e é aceite pelos falantes como perfeitamente gramatical e produtivo.
  • Os adjetivos desta classe (tal como os de tema em /A/) distinguem-se dos de tema em /O/ por NUNCA admitirem marcação formal de género. As gramáticas referem-se habitualmente a eles como “adjetivos uniformes” e, conforme é sublinhado por Mattoso Camara e outros autores, esta é, por esta razão, a única classe em que a flexão dos nomes e a dos adjetivos apresentam diferenças formais consideráveis. Com efeito, nos nomes e adjetivos de tema em /E/, se alguns nomes admitem femininos marcados com ­–a (senhora, doutora, juíza, infanta, embaixadora, monja), os adjetivos, no masculino ou no feminino, terminam sempre com a vogal temática (ou com uma consoante, por queda desta vogal): o juiz competente, a juíza competente; o professor feliz, a professora feliz – não existindo formas como *a juíza competenta, *a professora feliza. Neste aspeto, estes adjetivos contrastam com os de tema em /O/, como já se disse e tal como se infere a partir dos seguintes exemplos:  o juiz simpático, a juíza simpática; o professor generoso, a professora generosa.

Esta particularidade gramatical é aqui referida para me permitir chegar a duas observações, uma que tem a ver diretamente com o tema central do debate que suscitou este texto, outra completamente distanciada dessa motivação.

Relembro que a génese destes apontamentos se deve a um debate promovido no âmbito de um encontro da Associação Portuguesa de Linguística para se discutir a questão do “falso neutro” com que o género masculino dos nomes pretende  muitas vezes ser utilizado. Nesse contexto, discutiu-se também se os nomes que designam profissões ou cargos devem admitir sistematicamente formas gramaticalmente distintas em função do sexo do referente.

O português costuma, para os nomes de tema em /O/, distinguir uma forma gramatical “masculina” e uma forma gramatical “feminina” quando se trata de referir um homem ou uma mulher: é um resquício da já referida ancestral correspondência entre género (gramatical) e sexo (biológico/identitário), patente em pares gramaticais (com nomes e com adjetivos) como médico/médica, enfermeiro/enfermeira, bibliotecário/bibliotecária, cozinheiro/cozinheira, etc.

Os nomes de tema em /A/ são aqueles que, em português, apresentam total impermeabilidade à marcação formal de qualquer variação gramatical de género: tanto nos nomes como nos adjetivos, as formas masculinas e femininas desta classe temática ostentam sempre uma terminação –a: o ginecologista socialista, a ginecologista socialista; o atleta entusiasta, a atleta entusiasta.

Nos nomes e adjetivos de tema em /E/, torna-se necessário ter presente um aspeto a que aludi mais acima: nesta classe, a marcação do feminino com ­–a não é tão regular nem tão sistemática como nos nomes e adjetivos de tema em /O/11. Muitas formas do feminino, como vimos, mantêm a terminação ­–e, como sucede com todos os adjetivos (a grande casa, a decisão importante) e com muitos nomes (a gerente, a residente, a consorte, a munícipe). Contudo, como vimos também, a formação de femininos em ­–a, nesta classe, para referir mulheres que desempenham determinados cargos ou funções, não está completamente vedada, nem em formas mais antigas, nem em formas mais recentes da língua, tanto em registos formais como em registos informais. Esta possibilidade é atestada em formas femininas de nomes de tema em /E/ como infanta, monja, governanta, embaixadora, juíza, aprendiza, mestra, ajudanta, chefa, etc.

Vêm estes considerandos a propósito da “legitimidade” de formas femininas como presidenta e mestra (titular do grau académico de mestrado, já que, num registo mais coloquial, esta forma feminina, para designar posições de chefia intermédia em ambiente de pequeno operariado, já existe há muito).

Gramaticalmente, como tentei em resumo fazer ver nestas últimas linhas, nada obsta – pelo contrário! – à circulação de tais formas femininas. Historicamente, o português é até bastante rico na sua produção e incorporação. A resistência à sua aceitação – aqui sim – parece-me muito mais enviesada por preconceitos socioculturais de uma sociedade onde os cargos de relevo são ainda predominantemente ocupados por homens. O facto de poucas mulheres ainda chegarem à presidência de instituições ou de estados e de só recentemente terem chegado a posições académicas de maior relevo causará uma resistência cultural a formas como “presidenta” ou “mestra”. Embora inteiramente justificáveis e justificadas do ponto de vista gramatical – recordem-se os casos  de “infanta”, “monja” ou “governanta”, de circulação “pacífica” na língua há vários séculos –, encontram uma resistência social considerável, indubitavelmente ligada a uma visão dominantemente masculina da sociedade e das relações de hierarquia e dominação no seu interior.

No caso de “presidenta”, estou convicto de que, à medida que mais mulheres forem ocupando cargos presidenciais e reivindicando o uso dessa forma para designarem as suas funções – como sucedeu durante o mandato presidencial de Dilma Rousseff no Brasil –, a questão acabará por se desvanecer, da mesma forma como se desvaneceu a polémica em torno de formas como “ministra”, “juíza” e “embaixadora” (e, em França, “professeure”, como feminino de “professeur”). Lembro-me muito bem de como se discutia, há 30 ou 40 anos, se uma mulher chegada ao governo, à magistratura ou à diplomacia – o que era uma inteira novidade no ordenamento social e mesmo jurídico-administrativo de Portugal nos anos imediatamente a seguir à Revolução –, deveria ser designada como “ministra” ou “ministro”, “juíza” ou “juiz”, “embaixadora” ou “embaixador”. Questões de lana caprina – do sexo das mulheres fazia-se então o sexo dos anjos – de que hoje poucos se lembram. O tempo, a insistência, a militância e a alteração da própria sociedade acabarão por ditar, estou certo, o futuro e o sucesso de formas como “presidenta” e “mestra”, tal como aconteceu com femininos como “embaixadora”, “juíza” e “ministra”.

A segunda observação que gostaria de aqui deixar a respeito dos nomes e adjetivos desta classe, da sua marcação de género e das suas terminações distancia-se consideravelmente do tema central destas notas e da apresentação que lhes deu origem, mas não resisto a tocar-lhe. Tem a ver com a forma como os nomes de tema em /E/ são frequentemente abreviados na escrita. É um detalhe formal, mas, se é nos detalhes que se esconde o diabo, penso que vale a pena dedicar-lhe aqui alguns instantes, para não nos ficarmos, por hoje, apenas nos anjos. Nas abreviaturas das formas ditas masculinas e femininas de nomes e adjetivos do português, é bastante comum conservar-se a terminação –o ou –a dessas formas – quando, obviamente, essas terminações se encontram nas formas não abreviadas –, entre outras razões para se preservar a indicação da concordância. Por essa razão, escrevemos “Exmº” para abreviar “excelentíssimo” e “Exmª” para “excelentíssima”, “Enfº” para “enfermeiro”  e “Enfª” para “enfermeira”, “Engº” para “engenheiro” e “Engª” para “engenheira”, p. ex. O –o ou –a finais dessas formas abreviadas, que tipograficamente costumam escrever-se em tipo elevado (como nos exemplos que acabei de dar), estão presentes já nas formas não abreviadas que dão origem às abreviaturas (vd. sublinhados nos exemplos por extenso que acabo de enunciar).

Por essa mesma razão, faz todo o sentido que, nos nomes de tema em /E/ cujas formas de feminino apresentem uma terminação –a, esse –a seja mantido nas abreviaturas correspondentes: “Drª”, de “doutora”; “Profª”, de “professora”; “Srª”, de “senhora”; etc. O que me parece totalmente inexplicável é que em abreviaturas de nomes de tema em /E/ sem qualquer terminação vocálica (-e ou outra qualquer) – na sua maioria, nomes na forma do masculino – se encontrem formas como “Drº”, “Profº” ou “Srº”. Esta terminação – o  é exclusiva dos nomes de tema em /O/ (classe a que nem sequer pertencem os nomes “doutor”, “professor” e “senhor”, como vimos mais acima); por conseguinte, está completamente ausente destes nomes, não existindo sequer nas formas “masculinas” correspondentes, como se comprova pela observação das formas não abreviadas: alguém diz, em português, algo como *doutoro, *professoro ou *senhoro? Não têm por isso qualquer cabimento nem qualquer explicação abreviaturas como “Drº”, “Profº” ou “Srº”, para as quais as únicas formas aceitáveis serão, respetivamente, “Dr.”, “Prof.” e “Sr.”. A persistência das primeiras em documentos oficiais, em placas toponímicas, na imprensa, no uso corrente só mostra como estudar um bocadinho mais de gramática não só não dói como evitaria umas falhas muito básicas e nos ajudaria a centrar-nos com objetividade e parecer em questões mais sistemáticas do uso da língua.

4. E agora o dito falso neutro

Tantas considerações como as que fui reunindo nos pontos anteriores servem-me para chegar finalmente à grande questão que motivou a sessão pública que deu origem a este texto.

Discutia-se se o uso, em português, de nomes e adjetivos no dito masculino para se englobar pessoas de ambos os sexos é ou não uma forma de marcar uma espécie de supremacia máscula, de dominação heteropatriarcal sobre as mulheres.

A questão é sobretudo premente em contextos como a legística, mas a sua importância não se reduz à formulação de leis e regulamentos. Dizer

Os candidatos devem enviar os documentos por via eletrónica.

Aos contribuintes em falta será aplicada uma coima de 500 euros.

Os encarregados de educação devem comparecer na escola na próxima sexta-feira às 20.00 horas.

ou

Caros Alunos: A data do teste foi alterada para dia 7 de abril.

tem, supostamente, o objetivo de incluir candidatos e candidatas, pagadoras e pagadores de impostos, encarregados e encarregadas de educação, alunas e alunos. Estas formulações pretendem, por isso, ser inclusivas, com base num princípio linguístico que diz que em português – como, de resto, em quase todas as línguas – há uma forma gramatical dos nomes que se aplicam a seres animados que é “neutral” quanto ao sexo dos referentes. Sucede que em português essa forma coincide com a forma que tradicionalmente – e inadequadamente, como pretendi sugerir em 2 – é designada por “masculino”.

Há falantes que sentem estas formulações como excludentes: dizer “candidatos”, “alunos”, “os contribuintes” exclui, na sua forma de se relacionarem com a língua, as mulheres candidatas, as mulheres alunas e as mulheres contribuintes.

Com serenidade e objetividade, e recuperando uma série de argumentos que procurei expor nos pontos anteriores, vou tentar recentrar a questão no plano linguístico, já que entendo esta questão, insisto, como mais linguística e gramatical do que antropológica.

Começo por reiterar que aquilo a que tradicionalmente e infelizmente se chama “género” e “género masculino” tem, nas línguas indo-europeias de hoje, uma relação perdida há vários milénios com possível o sexo biológico (ou identitário) dos referentes. A propriedade concordancial a que é costume chamar-se género e que eu gostaria de passar a ver referida como concordância de classe (ou algo equivalente) é uma propriedade gramatical inerente a todos os nomes, que tem a ver unicamente com a capacidade que esses nomes têm de impor certas marcas formais às restantes palavras que com elas se relacionam dentro de um mesmo constituinte sintático, sem qualquer implicação, nas línguas modernas, com categorias extragramaticais como o sexo biológico ou outras quaisquer. Palavras que designam seres assexuados têm “género” (o copo, a janela, a base, o céu, a fogueira, o computador, a verdade) e palavras que designam seres sexuados usam por vezes o “masculino” para designarem fêmeas (A Paula [feminino] é um elemento [masculino] muito importante desta turma.) e o “feminino” para designarem machos (O João [masculino] é uma pessoa extremamente bondosa [feminino].).

As leis, os regulamentos, outros textos também usam este tipo de formulações, em que a questão de uma possível discriminação sexual não se coloca:

As pessoas interessadas devem enviar proposta em carta fechada até às 18.00h do dia 20 de fevereiro.

Solicitamos aos membros do Clube Feminino de Natação que paguem as suas quotas até ao dia 8 de cada mês.

No caso dos nomes em que linguisticamente se pode conservar remotamente alguma marcação de sexo através da chamada flexão de género – os tais nomes que admitem uma forma “masculina” para designar preferencialmente seres do sexo masculino e uma forma “feminina” para designar preferencialmente seres do sexo feminino, como “candidato/candidata”, “encarregado de educação/encarregada de educação”, “advogado/advogada”, etc. –, admito que a questão possa adquirir uma dimensão ausente dos exemplos dados no parágrafo anterior.

Insisto, no entanto, no carácter eminentemente linguístico, formal, da questão, que vou tentar continuar a discutir em torno de duas dimensões principais:

– o princípio linguístico da economia;

– algumas das soluções propostas pelos defensores da tese da discriminação imposta pelo “falso neutro”. 

 A economia linguística

Sendo linguista, é para mim inevitável enquadrar toda esta questão à luz dos argumentos predominantemente linguísticos. Quando decidirmos de vez passar a viver numa sociedade mais ignorante em que os especialistas dos mais diversos assuntos, da medicina e da astronomia à linguística e à matemática, forem impedidos de pensar a realidade e de se pronunciarem sobre ela com os instrumentos que as suas ciências lhes dão, eu talvez me cale. Enquanto, pelo menos ilusoriamente, continuarmos a viver numa sociedade em que o conhecimento obtido por meio da investigação, da razão e da reflexão continuar a desempenhar um papel determinante na construção e na aplicação do conhecimento e na tomada de decisões (políticas e outras), não vou trair a minha formação e a minha condição de linguista, de que me orgulho, nem trocar a análise racional de dados formais pela interpretação subjetiva ou emotiva dos mesmos.

É só por isto, e não por qualquer teimosia circular, que insisto em olhar para esta questão a partir da minha condição, da minha formação e dos meus conhecimentos de linguista.

É mais do que sabido que a cognição humana e todas as línguas naturais obedecem a um princípio que, entre outros nomes, é muitas vezes etiquetado como Princípio da Economia. A clássica Teoria dos Conjuntos, em lógica e em matemática, tentou condensar este princípio ao distinguir as duas possibilidades básicas de elencar os indivíduos que integram um conjunto: ou nomeando-os um a um, o que, no caso de conjuntos muito numerosos ou infinitos, se revela difícil ou mesmo impossível; ou identificando uma propriedade comum a todos eles, derivando assim uma espécie de “classe natural” a que os indivíduos do conjunto pertencem. Definição por extensão ou enumerativa e definição por compreensão ou por intensão são, respetivamente, estas duas modalidades básicas12, com uma transdução quase perfeita no domínio da expressão linguística, conforme demonstrado de forma exemplaríssima por Óscar Lopes na sua Gramática Simbólica do Português13.

Eu, para referir os 9 filhos e filhas de um mesmo pai, posso fazê-lo das seguintes formas, sendo as duas, do ponto de vista do conteúdo proposicional, equivalentes entre si:

A={Pedro, Maria, Marta, Rui, André, Luís, Sara, Rita, Carla}

A={Filho(a)s de João}

O conteúdo das duas formulações é exatamente o mesmo, mas a segunda é mais económica, na medida em que mais condensada, mais “geral” e mais “holística”: recorre a menos meios linguísticos (a “menos palavras”, optando pela alusão a uma só propriedade mais geral e comum a todos os elementos do conjunto, se quisermos aqui sobressimplificar o assunto).

A nossa capacidade cognitiva fundamental de agrupar objetos em categorias (cores, alimentos, graus de parentesco, espécies de animais, etc.), em vez de armazenarmos informação solta acerca do número infinito de entes que cabem em todos esses conjuntos, diminuindo assim o fardo processual, é um reflexo desta organização lógica da informação e da nossa predisposição neurofuncional para assim a processarmos).

As línguas obedecem também a esta propriedade, como tentei ilustrar com o brevíssimo exemplo dado poucas linhas acima e conforme amplamente explicado pela citada Gramática Simbólica do Português do Professor Óscar Lopes.

A concordância, de que falei no início destas notas, é um reflexo dessa subordinação das línguas ao princípio da economia de meios: para tornar mais explícito o englobamento de todas as palavras de um conjunto maior nesse mesmo conjunto de forma inequívoca e facilmente processável, quase todas as línguas desenvolveram mecanismos de estender uma propriedade formal de uma palavra-núcleo a todos os seus “complementos”, tornando inequívoca e até certo ponto “mnemónica” essa relação de pertença, fulcral para o armazenamento e o processamento da informação conceptual e linguística mais abundante.

A capacidade de anaforização é outro reflexo espantosamente belo e potente de assegurar a economia de processamento linguístico. Numa sequência como a seguinte

O Tiago e a Raquel saíram juntos no sábado. Ele comprou-lhe um gelado e ela deu-lhe um beijo.

o português torna desnecessário, na segunda frase, repetir “o Tiago” e “a Raquel” (através dos pronomes pessoais “ele” e “ela”) e permite mesmo que uma “palavrinha” como “lhe” possa referir-se, num caso, a Tiago e, noutro, a Raquel.

Uma formulação não económica da sequência, que os falantes intuem como pouco “natural”, seria algo como

O Tiago e a Raquel saíram juntos no sábado. O Tiago comprou um gelado para a Raquel e a Raquel deu um beijo ao Tiago.

Outra manifestação da economia que rege as línguas é a sua aversão aos sinónimos exatos: todos aprendemos na escola que o português (como a maior parte das línguas) tem palavras sinónimas, isto é, palavras “com o mesmo significado”. A nossa professora de Português mandou-nos passar para o caderno exemplos como “casa” e “habitação”, “aluno” e “estudante”, “pai” e “progenitor”, “número” e “algarismo”. Os especialistas em semântica sublinham porém que não há tantos exemplos de sinonímia perfeita como isso. Na verdade, se a língua conserva duas palavras diferentes supostamente sinónimas, na maior parte dos casos é porque uma delas tem em relação à outra alguma pequena diferença de significado: “odiar” não é exatamente o mesmo que “execrar”, “trabalhador” não é exatamente o mesmo que “colaborador”, “doença” e “maleita” hão de ter alguma pequena distinção de significado e alguma razão há de haver para, apesar de “morrer” e “falecer” serem dados como sinónimos, eu poder dizer “O presidente da Junta faleceu às 4 horas” mas não poder dizer “O elefante do jardim zoológico faleceu às 4 horas”, embora possa aplicar o verbo “morrer”, indistintamente, quer ao presidente da Junta, quer ao elefante: “O presidente da Junta/o elefante do jardim zoológico morreu às 4 horas”... Caso contrário, a língua ter-se-ia encarregado de eliminar um dos termos dados como equivalentes, em nome da dita economia, tal como sucedeu com as palavras “telefonia”, substituída por “rádio”, “criada”, substituída por “empregada doméstica”, “ludopédio”, substituída por “futebol”.

Na área da linguística em que mais trabalho, a fonologia, uma das manifestações da economia linguística é a seguinte: as capacidades articulatórias, auditivas e cognitivas do ser humano são muito extensas. As nossas capacidades cognitivas e biológicas permitem-nos articular para cima de duas centenas de sons diferentes, como o demonstra a tabela completa dos símbolos fonéticos que corresponde ao Alfabeto Fonético Internacional. Não existe uma única língua, contudo, que faça uso desses duzentos e tal “fonemas” diferentes: cada língua dispensou, “por desnecessidade”, todos os sons que não eram precisos, para manter apenas as diferenças entre as palavras do seu dicionário estritamente suficientes e necessárias para se assegurar a comunicação entre falantes e evitar-se assim a confusão nas trocas informacionais. Historicamente, verifica-se que o quadro dos fonemas de uma língua se vai alargando e estreitando ao longo dos tempos, à medida que isso se torna categoricamente necessário para se acomodarem novas palavras na língua ou em virtude do desuso em que caem certas distinções lexicais. Foi por isso, por exemplo, que no português falado na maior parte dos pontos de Portugal foram desaparecendo ao longo da evolução histórica da língua certos sons e que hoje temos um inventário de consonantes mais diminuto do que aquele que supostamente existia no português medieval.

Ora, é exatamente esta mesma economia linguística que faz com que, em todas as línguas do mundo – o português não é uma exceção quanto a isto –, existam formulações genéricas que possibilitem, com o uso de menores recursos linguísticos, a menção à maior quantidade possível de “conteúdo”.

Um parágrafo como o seguinte é possível, obviamente:

Os e as utentes deste ginásio devem dirigir-se aos professores e às professoras encarregados e encarregadas da vigilância dos espaços antes de qualquer atividade e devem solicitar previamente aos funcionários e às funcionárias a chave de acesso aos balneários. Os e as responsáveis do ginásio não se responsabilizam pelos danos e pelos furtos de que os frequentadores e as frequentadoras do ginásio possam ser vítimas.

Ela é muito menos económica, no sentido de “economia” que antes tentei explicar, do que algo como

Os utentes deste ginásio devem dirigir-se aos encarregados da vigilância dos espaços antes de qualquer atividade e devem solicitar previamente aos funcionários a chave de acesso aos balneários. Os responsáveis do ginásio não se responsabilizam pelos danos e pelos furtos de que os frequentadores do ginásio possam ser vítimas.

O uso das formas ditas masculinas para palavras como “utentes”, “professores”, “funcionários” e “alunos”, pretendendo abranger pessoas de ambos os sexos – utentes homens e mulheres, professoras e professores, funcionárias e funcionários, alunas e alunos –, visa unicamente, de um ponto de vista estritamente linguístico e informacional, atingir uma redação mais económica do texto.

O uso da forma dita masculina para estas formulações económicas e genéricas é o uso consagrado em português. Se conseguirmos ter presente, com base em todos os argumentos que tentei reunir na primeira parte, que o “masculino gramatical” não corresponde sempre e fatalmente ao “masculino biológico/antropológico” (lembremo-nos novamente de frases como “A Paula é um elemento valioso da turma” e similares) e que a designação “masculino” para etiquetar uma propriedade gramatical é um infortúnio que pode ser modificado a qualquer momento (passemos a chamar-lhe “Classe II”, “Classe Beta”, “Classe B” ou algo assim), diminuímos a carga interpretativa sociológica que as leituras “machistas” deste tipo de formulações pretendem dar-lhes, querendo associá-las à viva força a uma visão heteropatriarcal deliberada que, sinceramente e a meu ver, está ausente da motivação exclusivamente gramatical (e cognitiva) deste tipo de construções em português.

Por outro lado, tenhamos presente que várias línguas elegem o género gramatical que as respetivas descrições gramaticais etiquetam como feminino para as formulações genéricas. O maasai, falado no Quénia e na Tanzânia, o mohawk, na América do Norte, e o galês, na Grã-Bretanha, contam-se entre tais línguas14, isto é, entre as línguas em que dizer algo como (numa tradução literal)

As professoras desta escola devem distribuir a todas as suas alunas, no início de cada aula, uma folha de exercícios legível.

tem uma leitura como

Os professores e as professoras desta escola devem distribuir a todos os seus alunos e a todas as suas alunas, no início de cada aula, uma folha de exercícios legível.

O português não dispõe, ao contrário de outras línguas e ao contrário do que a língua tetra-tetravó que lhe deu origem, de um género gramatical que apague completamente qualquer indício, ainda que extremamente longínquo, de marcação sexual. A questão estaria porventura resolvida mais a contento de quem vê o “falso neutro” como uma dominação machista da gramática do português se pudéssemos dispor de uma forma ainda mais neutra, do ponto de vista morfológico (gramatical), para formulações genéricas supostamente mais inclusivas de homens e mulheres. Como lembrarei mais adiante, têm recentemente surgido algumas propostas para a criação de uma espécie de “género neutro” no português (e noutras línguas faladas em países onde a mesma questão tem sido socialmente levantada) – a não confundir, apesar de tudo, com o “género neutro” gramatical de línguas como o indo-europeu, o grego antigo, o latim ou o alemão (onde Das Mädchen, “a menina”, pertence ao dito neutro morfológico!).

Para infelicidade de muitos, porém, deixem-me dizer que mudar este aspeto da gramática – como qualquer outro aspeto da gramática, de resto… – não está, todavia, ao alcance do legislador ou da deliberação explícita de um conjunto de falantes, por mais iluminados ou bem intencionados que esses falantes queiram ser. Ao contrário do que pensam muitas das pessoas que têm falado e escrito sobre este assunto, as línguas não se mudam, nem moldam, por decreto. Alguém no seu perfeito juízo acha que uma lei – formal ou informal – que estatuísse que a partir das zero horas do dia 24 de dezembro de 2017 era proibido o uso do pretérito imperfeito do conjuntivo ou das palavras começadas por /b/ teria algum sucesso? Teria o mesmo destino de uma lei que mandasse os mamíferos realizar a fotossíntese ou Júpiter passar a orbitar em torno da Terra nos dias pares e em torno de Vénus nos dias ímpares: há objetos e fenómenos naturais  que, pura e simplesmente, estão fora do alcance de qualquer vontade ou determinação humana, de qualquer ato legislativo, de qualquer disposição normativa, do que quer que seja desejado e objetivamente planeado para se alterar as propriedades intrínsecas de tais objetos e fenómenos. A gramática – não a língua: a gramática! – pertence ao conjunto de tais objetos independentes da convenção humana e os exemplos que tentei dar ainda agora tentam mostrá-lo.

A imposição legal e política de determinadas palavras, formas e regras gramaticais em detrimento de outras terminantemente proibidas, como um fenómeno totalitário, é um exclusivo da ficção orwelliana e do seu malfadado Newspeak, praticamente impossível no universo mais livre das línguas naturais.

Desdramatizar esta questão, separando claramente aquilo que é uma propriedade formal das línguas de uma interpretação antropológica pouco fundamentada de um traço gramatical, parece-me ser o melhor caminho, para já, para desencalharmos este problema (que é, quanto a mim, um falso problema).

Admito que, de forma limitada, instituições públicas, órgãos de comunicação social, estabelecimentos de ensino, outros organismos possam estabelecer algumas regras que de certa forma contornem usos linguísticos que possam ser recebidos como potencialmente ofensivos ou discriminatórios. Com frequência, intencionalmente ou não, inúmeros textos evitam já, recorrendo a construções gramaticalmente aceitáveis em português, formulações que possam ser sujeitas a leituras consideradas discriminatórias. Dizer “pessoas interessadas” em vez de “interessados” ou “Convida-se à apresentação de candidaturas” em vez de “Convida-se à apresentação de candidatos” pode, em certas circunstâncias, ser uma solução aceitável – social e linguisticamente – para se contornar uma possível interpretação sexista de certo tipo de textos. A publicação de listas de termos que possam ser considerados ofensivos ou discriminatórios (não só com base na identidade e nas opções sexuais, mas contemplando também todas as formas de discriminação que a própria legislação geral combate) é igualmente um caminho viável para se evitar mal-entendidos ou fontes de potencial conflito.

A opção oficial por se designarem explicitamente as mulheres titulares de cargos públicos nas diversas carreiras da política, da magistratura, da função pública, da diplomacia, da polícia e das forças armadas, entre outras, através das formas femininas gramaticalmente aceitáveis dos nomes designativos das suas funções é algo que está também ao alcance da razoabilidade e da decisão política.

Ressalvo que em todos estes exemplos a deliberação explícita sobre a forma linguística a adotar se abate sobre aspectos não nucleares da gramática: o mais que se conseguirá será regular o léxico, certas condições pragmáticas de uso linguístico, uma ou outra alternativa de formulação linguística – nunca um aspecto nuclear da gramática, a qual, pelas razões que já expus, é impermeável à deliberação humana de tipo normativo.

Os livros de estilo de alguns jornais são um entre vários exemplos deste tipo de instrumentos regulatórios. Guiões similares poderiam ser preparados para uso no ensino e na administração pública, p. ex. É salutar que estes passos sejam dados e penso que os linguistas estão disponíveis para cooperarem com o esforço de se encontrarem soluções gramaticalmente plausíveis.

Repito que o espectro de intervenção neste campo é, no entanto, relativamente limitado a aspectos de natureza lexical e estilística. Tentarei clarificar melhor as principais razões desta minha prudência nas secções seguintes da exposição.

As soluções propostas

Apesar de descrer de qualquer possibilidade viável de implantar decisões profundas de tipo top-down que imponham como que uma nova propriedade gramatical no português, pelos motivos que acabo de explicar, dedicarei algum tempo a refletir brevemente sobre algumas das propostas que têm surgido de forma mais ou menos consistente a respeito deste assunto.

 Uma dessas propostas defende a explicitação exaustiva – a definição por extensão acima referida – dos dois gêneros gramaticais em todas as formulações linguísticas. Num aviso público, numa comunicação dirigida a uma turma de estudantes, num decreto-lei, por exemplo, as pessoas abrangidas por uma determinada notícia ou medida seriam sempre, de preferência, designadas através do uso extensivo dos dois gêneros:

1 – Os alunos e as alunas que pretendam alugar um cacifo terão de se dirigir ao funcionário ou à funcionária da cantina, depois de solicitarem o respectivo impresso ao seu diretor de turma ou à sua diretora de turma, e efetuar o pagamento até ao dia 15 de cada mês junto do responsável ou da responsável do pavilhão.

2 – No final da aula de Educação Física, o respectivo professor ou a respectiva professora deve pedir ao delegado ou à delegada da turma que identifique os alunos e as alunas que lhe confiaram valores.”

“O(a)s moradore(a)s dos condomínios da urbanização devem informar o(a)s seus(suas) administradore(a)s e delegado(a)s de quaisquer anomalias verificadas com os elevadores e avisar o(a)s vigilantes de cada prédio da presença de estranho(a)s nas garagens.”

Sem entrar em grandes considerações de ordem teórica ou em análises linguísticas muito aprofundadas, qualquer falante do português percebe que estas formulações são pouco cômodas e pouco “naturais”. Já tínhamos apreciado algumas delas mais acima, tendo visto então como elas, violando o princípio da economia linguística (e cognitiva), dificultam o seu processamento verbal.

 São formulações que, de facto, contrariam o princípio da economia, tornam-se dificilmente legíveis, obrigam a um processamento pesado, apresentam índices elevados de redundância informativa e constituem até exemplos que estão na fronteira do que são textos linguisticamente aceitáveis em português.

 Mesmo que se aceite um uso mais generalizado deste tipo de formulações, coloca-se ainda uma dúvida metodológica: na indicação exaustiva dos dois gêneros, por qual começar? Isto é: diga-se “as professoras e os professores convidam a comunidade escolar” ou “os professores e as professoras convidam a comunidade escolar”? É que começar pelo feminino pode ser visto como uma galanteria paternalista e condescendente, mas começar pelo masculino pode ser recebido como uma mostra do tal machismo social de que se pretende inculpar a gramática (que não tem culpa de nada…).

Uma solução alternativa a esta consistiria em substituir – na escrita e só na escrita, como é óbvio – quaisquer terminações gráficas que pudessem ser interpretadas como indiciadoras da marcação de papéis sexuais por terminações artificiosas que supostamente eliminariam tal sexismo. Escrever “Amig@s” ou “Amigxs”, “Car@s Colegas” (já tenho visto “Car@s Coleg@s”!) poderia, de acordo com os seguidores deste tipo de práticas gráficas, evitar o embaraço de se estar a dar a entender que só nos dirigimos aos amigos homens ou às amigas mulheres, ou que pomos uns à frente dos outros ou umas à frente das outras.

Este artifício não passa, na verdade, disso mesmo: um artifício. Sendo eu um fonólogo, a pergunta que me ocorre imediatamente é a seguinte: mas afinal como é que se pronuncia aquele xis, aquela arroba, aquele sinalzinho púdico que se põe ali como a folhinha de parra em cima dos órgãos sexuais das estátuas dos museus vaticanos? Esta é mais uma dimensão do problema que eu, como linguista, não posso ignorar. É que as línguas são, na sua essência, um objeto oral: a escrita é um acidente cultural recente na história da linguagem e da humanidade e está ao alcance de apenas uma parte dos falantes de todas as línguas do mundo (tipicamente, dos jovens e adultos escolarizados que falem línguas possuidoras de um sistema de escrita, o que infelizmente ainda está longe de ser um universal civilizacional mesmo nos nossos dias). Na oralidade, que é a verdadeira essência linguística, a que é que correspondem estas sinalefas supostamente miraculosas e inofensivas?

Se, numa sessão pública, por exemplo, me derem a ler um discurso encimado por um vocativo do tipo “Car@s Alun@s”, digam-me, mas digam-me com toda a sinceridade e com toda a honestidade e com toda a clareza: como é que se lê aquela arroba?

*****

Dizem que os anjos não têm sexo e que discuti-lo é perder tempo com verbo inútil e desperdiçada razão. A gramática, assim sendo, é angelical também: ela não tem sexo e por isso defendo que discutir o sexo da gramática é como discutir o sexo dos anjos. Género, desafortunadamente chamado como tal até aos nossos dias, tem-no sem dúvida, mas de forma largamente independente dessa propriedade biológica e cultural.

Não culpem a gramática da dominação masculina do mundo, que é um problema social e cultural inegável. Não confundam a gramática com a linguagem e com o poder fascizante que certos usos da linguagem podem ter. Mas, já agora, lembremo-nos também do uso libertador, revolucionário, criativo e criador que a linguagem, edificada sobre a gramática, também torna possíveis.

E através da linguagem e desses usos libertadores que dela podemos fazer concentremo-nos num mundo mais razoável e mais racional, menos discriminatório, mais pacífico e mais igual. Concentremo-nos naquilo com que se constrói a paz e a liberdade, em que a língua, a palavra e a gramática não são ameaças: são sim portas e veredas para o diálogo, para o pensamento livre e esclarecido sem o qual não há o mundo sem desigualdades, sem opressões e sem discriminações que é o mundo que eu também quero.

[Notas]

1 Em latim, este tipo particular de concordância apresenta ainda uma outra vantagem para o processamento das frases: ao contrário do português e das restantes línguas descendentes do latim, este permitia uma grande liberdade na ordem das palavras dentro da frase. Com efeito, nesta língua é possível intercalar verbos, outros nomes, inclusive palavras de outras orações, entre um nome e um adjetivo ligados por relações de concordância. A repetição da terminação “casual” (é este o nome técnico dado à terminação associada a uma dada função sintática, em línguas como o latim) permite ao ouvinte reagrupar mais imediatamente as palavras que pertencem ao mesmo constituinte sintático. Esta terá sido mesmo, porventura, a principal motivação para o surgimento dos fenómenos de concordância nas línguas do mundo: facilitar o processamento do material linguístico. Não foi certamente para discriminar mulheres ou promover o poder do patriarcado. Em latim, grandemente graças à concordância, a primeira frase dos exemplos dados no texto pode ser reformulada de vários modos, através da alteração da ordem de palavras, sem que tal altere a sua interpretação. Independentemente da ordem das palavras, todas as seguintes “frases” têm o mesmo significado: “O aluno novo leu o livro grande”. Um ouvinte do latim reagruparia com maior rapidez e menor esforço cognitivo as palavras pertencentes ao sujeito e ao complemento direto a partir da identificação das marcas de concordância conservadas, p. ex., pelas terminações de nomes e adjetivos concordantes entre si.

Discipulus novus legit librum magnum.

Novus discipulus librum magnum legit.

Librum legit magnum discipulus novus.

2 Ver, p. ex., os dados da língua gur brevemente explicados e discutidos por G. J. Dimmendaal em DIMMENDAAL, G. J. 2000. Morphology. In: B. Heine, D. Nurse (Eds.). African Languages. An Introduction. Cambridge: Cambridge University Press, 161-193 (pp. 189-190).

3 Recomendo a leitura de obras exaustivas, especificamente dedicadas a este assunto, de entre as quais destaco o livro de Greville Corbett: CORBETT, G. G. 2006. Agreement. Cambridge: Cambridge University Press.

4 SZEMERÉNYI, O. J. L. 1996. Introduction to Indo-European Linguistics. Oxford: Oxford University Press, pp. 155-157; BEEKES, R. S. P. 2011. Comparative Indo-European Linguistics. An Introduction. 2nd. ed. Amsterdam: John Benjamins, p. 189; LURAGHI, S. 2011. The origin of the Proto-Indo-European gender system: Typological considerations. Folia Linguistica. 45(2): 435–464.

5 LURAGHI – op. cit.

6 Cf., entre outros textos desta autora, os seguintes livros: GIMBUTAS, M. 1989. The Language of the Goddess: Unearthing the Hidden Symbols of Western Civilization. San Francisco: Harper & Row; GIMBUTAS, M. 1991. The Civilization of the Goddess: The World of Old Europe. San Francisco: Harper.

7 Vou chamar ao longo deste texto, sem me pronunciar minimamente sobre o assunto, “sexo identitário” à opção antropológica que muitos indivíduos sentem e reivindicam como um direito seu de, independentemente das marcas exteriores e genéticas do sexo masculino ou feminino que parecem dominantes no seu perfil físico, se inscreverem voluntariamente, na sua vida pessoal e social, em qualquer um desses dois sexos ou ainda noutras categorias não abrangidas por essa bipartição estrita, em resultado de um ato de livre escolha para a afirmação da sua identidade social e sexual. Uma vez que continuo a usar o termo “género” para uma propriedade gramatical e formal das línguas, não adotarei aqui a aceção de “género” com que se pretende nomear esse direito emancipatório, ao contrário do uso corrente da palavra que vai ganhando expressão cada vez maior no português atual.

8 Vd. a minha nota 7, neste texto.

9 Esta vogal pronuncia-se1 (SAMPA) no português europeu e [i] ou [e] nas variedades não europeias da língua.

10 Cf. Camara Jr., J. M. 1988. Problemas de Lingüística Descritiva. 13ª ed. Petrópolis RJ: Vozes, 52, 60-61, 63, 64.

11 Incluirei aqui uma pequena nota histórica, com algum impacto lateral para a compreensão global de toda a questão, relacionada com a formação do feminino nos nomes (e só nestes; neste momento, não me ocupo dos adjetivos) pertencentes aos nomes de tema em /E/ com “masculino” terminado em “-or”. No português medieval – onde eram relativamente frequentes, como vimos, formas como infanta e monja, p. ex. –, tais nomes, curiosamente, não admitiam marcação morfológica do feminino, pelo que encontramos, nesse estádio da língua, formas como “minha senhor”. A observação deste tipo de dados pode ajudar-nos a perceber melhor a aparente irregularidade, patente ainda no estádio atual da língua, no tocante à formação das formas de feminino dentro desta classe temática.

12 BOUVIER, A. 1969. A teoria dos conjuntos. Mem Martins: Publicações Europa-América, pp. 11-12.

13 LOPES, Ó. 1972. Gramática Simbólica do Português. 2.ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 41-42 ss.

14 Veja-se o levantamento exaustivo realizado por Heidi C. Newell na sua tese de mestrado: NEWELL, Heidi C. 2001. A Consideration of Feminine Default Gender. Chicago IL: North Park University.Fonte

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4 COMENTÁRIOS

  1. Usar “@” serve apenas para colaborar com a ignorância que tenta corromper o idioma por não saberem que “Caros” e “Amigos” já incluem ambos os sexos. Lamentável. Essa é a herança dos petralhas e dos atuais “progressistas” que trabalham para a involução e o retrocesso.

  2. Bem, o Portugues existe pra me servir (servir à minha comunicacao), nao o contrario. Se o Portugues nao atende às novas demandas, preciso adapta-lo. Pois nao deixa de ser uma lingua viva e que se adapta aos novos costumes e tecnologias.

  3. Para esclarecer melhor meu comentário: O primeiro governo Lula, do PT – Partido dos Trabalhadores (assim chamado) ocorreu nos anos 2003 a 2007, e Luiz Inacio foi reeleito para um novo governo de 4 anos, sendo substituído pela também petista Dilma Vania Roussef, que, reeleita, foi “impinchada” (afastada por improbidade administrativa). O 1º governo Lula implantou também um novo sistema de Senso Escolar (anual), que teve como uma das características, a classificação dos alunos em 6 (seis) categorias “raciais” – brancos, negros, pardos, amarelos, indígenas e “não declarados”. (Fui Diretor de escola pública durante 20 anos, em São Paulo)

  4. Excelente artigo, do pondo de vista científico (linguístico), biológico, e sociológico. Bom para fundamentar as discussões sobre a chamada “Ideologia de gênero”, que se implantou no Brasil, aparentemente em caráter definitivo, desde o 1º governo Lula, e que hoje vigora em todos(?) os países do ocidente. Apesar de tudo isso, creio que GENERO É UMA CATEGORIA GRAMATICAL, que nada tem a ver com sexo (Bilogia): lápis é uma palavra do gênero masculino, enquanto caneta é uma palavra do gênero feminino. Por outro lado, os indivíduos animados, são do sexo masculino ou feminino de acordo com suas característica fisiológicas. Simples assim. Sexo é uma categoria bio-psicológica nos seres humanos, relacionada, naturalmente, com o aparelho reprodutivo. Trata-se, pois de uma realidade simplesmente objetiva, sem conotações de natureza valorativa ou moral. Mas as questões, e a problematização do assunto, continuam.

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